7 de jul. de 2012

O Casamento Crente

As trombetas estão desafinadas. O vô da noiva quase desmaiou de susto. Pare com isso, Maria de Fátima. Isso lá é hora de querer rir, no altar, com a noiva do teu filho entrando. Coitadinha, até que está bonita. Olha a cara do João. Tá lindo, meu filho. Vou chorar de novo, ainda bem que o rímel não sai com água. Meu filho. Meu filhinho adorado. O tanto que me fez querer morrer. O quanto quis que ele não existisse, meu Deus, não posso pensar nessas coisas, não aqui. Mas agora passou, graças a Deus passou, olha que coisa linda, de terno. Nem parece aquele lixo que o pai ia pegar na boca toda semana, chapado, vomitado. Aquele menino esperto que era, que me tirava o fôlego de tanto correr, era tão bonzinho, tão sensível. Nós fomos um fracasso, pai e mãe de merda. Demos tudo o que o menino precisava, pra virar naquilo. Um drogado, um desgosto. Mas passou, concentra nisso, passou. Agora essa menina vai cuidar dele, essa igreja dela vai tomar todo o tempo deles, Deus, meu Deus, você não aceitou quando eu rezei as minhas novenas, a gente se rendeu a esses cultos intermináveis com essa gritaria. Mas eles curaram meu João, olha a cara dele, tá feliz, tá livre da droga já faz um ano, casando, meu Deus. Olha por eles, faz com que eu tenha algum sossego nessa vida. Amém. Ou aleluia.

Meu guri tá de pé, de novo. A Fátima bem que podia segurar um pouco esse choro. Aperto a mão pra dar uma força e ela já desmorona. Mãe de noivo chora, mas no nosso caso não pega bem. Já basta esse discurso do pastor. Eles salvam as almas pra jogar na cara o tempo todo, porra. Que azar, nora filha de pastor. Bem, eu que não queria estar na pele dele. João tá bem, tá centrado, se recuperou graças a essa menina aí, vai continuar assim, vai sim. Que missa mais bagunçada. Culto. Ah, João, João, pelo amor de Deus, escute isso que o homem tá te falando. A menina é a princesinha dele, tá todo mundo aqui te julgando. Estão te fazendo um favor de te aceitar, isso está bem claro. Por isso que você virou esse crente cego, mas o que é que eu estou pensando? Viva de bíblia na mão, se é pra tomar o lugar da pedra de crack. Meu filho, eu te vi morto, de tiro ou de droga, eu já esperava por isso, já tinha desistido de você. Prova pra eles que você pode, volta a ser aquele menino. Aquele que me amava tanto. Hoje você não me olha nos olhos. Eles te salvaram, eu não devia me sentir humilhado, aqui exposto, nesse altar. O homem que salvou meu filho da droga cita o Facebook no casamento da filha, Jesus amado. Vai ver é esse o problema, Deus me castigou por soberba. Foi aqui nessa garagem com essa gente sem ritual, sem chefe, sem cruz, que você se encontrou. Só posso agradecer. Acho que agora eles declaram marido e mulher. Mas que diacho essas trombetas.

Eu entendi, Jesus, é uma prova eu ter que casar minha filha com um drogado que eu mesmo internei e doutrinei. Podia ter deixado morrer. Tava quase lá. Queria poder pregar hoje com mais força mas só consegui implorar que ele cuide, que ame. “O segredo do casamento é o amor; ame, ame”. Patético. Ele ama os pais e o que fez com eles? Mentiu, roubou, vai saber que miséria deve ter feito pra conseguir cada grama de pó, cada pedra. O que ele vai fazer com a minha filhinha, meu Jesus, não me deixe pensar nisso. Tão linda, pura. Eu estou entregando minha filha em sacrifício, Senhor Jesus?

É o dia mais feliz da minha vida. Está tudo lindo. A decoração, a daminha andou direitinho até o altar. João está lindo. Eu só queria parar de pensar que depilei o cu. Pai, me desculpa, eu não tô te ouvindo, estou tão excitada. Um mês preparando esse casamento, os docinhos ficaram perfeitos, o vestido nem tanto porque a costureira da loja de aluguel não acertou muito bem a costura, está penicando. Mas ninguém tinha ainda me preparado para a depilação íntima. Que medo, que delícia, como é que vai ser? Me desculpe, pai, eu te respeitei e estou aqui virgem, de branco, mas não consigo orar, estou pecando, pecando, há meses eu venho pecando com os piores pensamentos. Há meses eu venho fazendo coisas que eu espero que o Senhor Nosso Jesus não veja, debaixo das cobertas, sozinha. No carro, com o João quando você e os irmãos não estão por perto. Que cerco vocês fizeram. Só me deu mais vontade. E agora chegou a hora, Meu Deus, que ele seja bom comigo.

3 de jun. de 2012

Lázara

Metade índia guarani, metade guaipeca. Vivia no mato com os irmãos, entre oito e dez, não sabia precisar, mais a mãe e o pai que saíam de manhã e voltavam à noite do trabalho, um com uma foice, o outro com uma pá. A irmã mais velha fazia a comida no tacho e à medida que os irmãos iam crescendo, iam também sumindo no rastro dos pais, levando seus próprios instrumentos. Era sempre assim, todo dia. Não tinham televisão, a distração da noite eram as estrelas, o que tinha pra comer, as brincadeiras com os irmãos menores, debaixo das cobertas até a mãe mandar pararem de risinho e dormir. Quando chegou sua vez de ser a mais velha que preparava o arroz com feijão, Lázara sumiu também; sem pá nem rastelo, no entanto.

Emprestada pra trabalhar de babá na cidade. Primeira medida foi ensinar-lhe a tomar um bom banho e a cortar as unhas. Dócil, olhos baixos, vivia no emprego e logo se dizia que era da família. Salário não havia, o serviço era pesado, mas a cama e a comida eram boas e a patroa fez questão que estudasse no supletivo noturno. Os anos passaram e as crianças cresceram. O casal se separou e ela foi indicada pra trabalhar num supermercado, já que com as novas caixas registradoras ninguém precisa ser um gênio da matemática. Morava numa meia-água de uma tia da antiga patroa. Com 18 anos ficou grávida do segurança do mercado. Ele bateu e chutou, quando soube. No Pronto Socorro, passada a cachaça, chorou de arrependimento e prometeu casamento na frente do policial. Foram embora pra capital. 

O segundo filho foi encomendado para segurar o marido ciumento. Com seu salário de merendeira terceirizada da escola municipal da região metropolitana, Lázara deu entrada num terreno de um loteamento irregular. As crianças cresceram à beira da BR, vizinhos de um desmanche e de um curioso lixão de geladeiras e fogões. Mas a casa de madeira, com vitrôs que um dia receberiam alguma pintura, era seu orgulho, seu único bem na vida.

Um dia morreu um irmão com a mulher num acidente. Deixaram duas crianças, um menino e uma menina. Não havia notícia do resto da família. Ou ela os assumia, ou iriam para um orfanato. Com a idade que tinham não havia qualquer chance de adoção. E sejamos claros, com a cara que tinham também – o sangue guarani no nariz achatado e olhos puxados. Lázara já não via os filhos e, quando os encontrava, depois de um dia inteiro de trabalho, mais as duas horas de ônibus e quarenta minutos de caminhada, não tinham o que dizer uns aos outros. O marido passava a noite como segurança de fábrica e durante o dia, dormia. Balançou os ombros, mandou que trouxessem os outros dois. Amontoaram-se na casa de duas peças, repetindo as cenas de sua infância, os risinhos debaixo do cobertor.

As crianças tinham raiva da escola, distante demais, gelada, e as coisas não entravam nas suas cabeças, os lápis pareciam não caber nas mãos, a merenda era repetitiva e ruim. Sem adulto por perto, matavam aula para pedir balas nas portas dos bares. 

O mais velho começou a roubar para pagar o crack. Ela não pôde mais ignorar quando levou-lhe a panela de pressão. Lázara tentou interná-lo numa clínica de crentes – até se fez de evangélica e frequentou alguns cultos, perdendo as poucas horas de descanso aos domingos – mas não foi possível. A internação teria de ser espontânea e o menino já tinha se transformado num zumbi sem qualquer outra vontade que não fosse o crack. 

O filho mais novo engravidou uma menina e foi morar com os sogros, do outro lado da cidade. O sobrinho foi preso por assalto à mão armada. A menina, acostumada à promiscuidade da cama única com os primos e irmão, logo começou a passar noites fora de casa. 

Lázara foi parar no Hospital Psiquiátrico. Ao médico do posto de saúde, que vinha lhe receitando calmantes, disse que iria se matar se passasse mais um dia na sua casa, seu único bem. Com uma olhada rápida na ficha o doutor acreditou e recomendou a internação. 

Nos horários de visitas, às terças, quintas e sábados, Lázara não recebia visitas. O médico compadeceu-se e telefonou para o trabalho de seu marido. Disse que ela precisava de amor da família. Que o filho viciado devia ir ver o estado em que deixou a mãe. Que a sobrinha lhe devia consideração. Que ela precisava pelo menos ver o neto. 

"Mas o senhor tem que entender o meu lado. Ela só falava de um tal colega que trabalha na limpeza da escola. Chegou em casa à meia-noite e disse que foi porque teve que fornecer lanche pra uma reunião. Eu liguei pra escola no dia seguinte e não tinha reunião nenhuma, doutor. Aí eu falei pra ela que se está me botando corno, então eu vou embora, porque posso não servir pra nada, mas sou homem".

Então que depois de tudo, Lázara surtou foi por culpa.

30 de abr. de 2012

O Sobrado

Era a terceira vez que eles saíam juntos. Professores; ela da rede pública – Geografia. Ele, pós-doutor em Matemática, professor da Federal. Tinham se conhecido num site de relacionamentos, gratuito. Já fazia tempo que não se viam. O papo não era dos mais animados e também não havia muita química entre eles, mas eram as alternativas que restavam para cada um, naquele feriado prolongado. Dia do Trabalho ou Dia do Trabalhador? - tinha sido a discussão do jantar regado a vinho da casa, mignon e talharim ao pesto. Tudo morno. Mas ela tinha decidido dar uma chance ao destino. Vai que justamente aquele sem-graça, sem sal, sem grana, sem beleza, aquele funcionário público desacostumado a emoções, se revela ser “aquele” que ela espera há tanto tempo? Que vai esquentar seus pés, dedicar-lhe amor cego, dar seu sobrenome ao seu filho, quem sabe ele não seja uma piada de mau gosto como foram os outros (aqueles que são lembrados pela família pelos apelidos – “o escroto”, “o fascistinha”, “o picareta”)?
Mas os bocejos vêm e ela bebe um pouco mais. Findo o jantar, ele a convida para conhecer seu sobrado novo. Três andares, na parte de baixo, a cozinha e a sala, no primeiro andar dois quartos, no segundo duas suítes e lá em cima um ático – ele adora ter, e falar que tem “um ático”. Nem imagina que Ático era o nome do primeiro namorado dela. Quanto tinha 13 anos, o mundo, os meninos, o futuro. Ela dá um sorrisinho, “vamos lá ver seu ático”.
Na saída, eles trocam um beijo; a caminho do sobrado, num bairro classe média, familiar, encostam os cotovelos quando ele troca as marchas no carro apertado. Ao chegar no tal sobrado, ele vira as chaves, acende a luz e fica de lado para que ela passe. No hall de entrada, um quadro com a foto de seu... companheiro? Parceiro?
Enfim. A foto dele, o dono do sobrado. Vestido de Batman.
“Mas o que é isso?”, pergunta, atônita. “É uma foto que uns alunos fizeram numa festa a fantasia, adoro essa foto”.
“Adora?”, espanta-se ainda mais. A foto é bizarra. Ele está de máscara, os cabelos ruivos saindo por debaixo dela, um sorriso franco, aberto, estúpido. As mãos na cintura – no cinto de utilidades. O uniforme nem mesmo é dos filmes mais recentes de Batman, é do tempo da série.
“Sim, eu adoro o Batman, não comentei com você?” e entra, acendendo as luzes da sala conjugada à cozinha, por onde se espalham, sobre as estantes, o aparelho de TV, o balcão e até sobre o micro-ondas dezenas, talvez uma centena, de pequenas estátuas de Batman. Batman de biscuit, Batman de gesso, Batman de borracha e até, pelo amor de deus, Batman de cristal. “Meus alunos sabem que sou fissurado em tudo de Batman e sempre me dão esses presentinhos”.
“Esses teus alunos são uns bons filhos-da-puta, isso sim, seu nerd ridículo”, ela pensa.
Caminha entre os mini-Batmans, pega um pela mão, quebra disfarçadamente um bat-apetrecho. “Acho que vou deixar o ático pra outro dia. Hoje fico só com a bat-caverna. Me chama um táxi?”
Logo, ambos desistiram dos sites de relacionamento.

7 de dez. de 2011

Encontros e desencontros #1

D.

Ela era das mais velhas da turma: enquanto a maioria entrou na faculdade com 18 anos, já tinha seus 23. Mas aparentava beirar os 40. De fato, chegou a ser confundida com uma professora, o que lhe pareceu bom porque acreditou dever-se ao estilo sóbrio de se vestir. Baixa, quadris muito largos, coxas grossas, fartas em celulite, cabelos compridos e encaracolados à moda das Panteras.  No rosto destacavam-se as olheiras profundas e lábios finos sempre bem pintados de bordô. Discreta, lamentava não ter coragem de exibir seu trunfo, a barriga chapada, sem uma dobrinha. Era a amigona.
D. acreditava em homeopatia, banho de assento, própolis, duendes, fadas, extraterrestres – quando chovia, dizia que eram os ETs que limpavam o planeta pra garantir o equilíbrio cósmico – em Deus, em Jesus Cristo, na existência do Diabo e na reencarnação. Mas só os amigos íntimos sabiam dessa sua capacidade extraordinária de crer. Em seu apartamento, enquanto houvesse alguém acordado, ouvia-se MPB ou new age. A coleção de cristais podia ser admirada, mas nunca tocada. Quando uma visita encostava, acidentalmente, num cristal, ela imediatamente o levava para a pia do banheiro e o deixava pelo menos meia hora sob a água corrente, que o limparia da energia humana. Nessa mesma pia ela teve a mais marcante experiência sexual de sua vida: uma trepada que começou no chuveiro e acabou sobre a torneira – nem notou o desconforto – com um aluno de Medicina que conheceu na cantina da faculdade.
Os dias seguintes foram de forra à condição de amiga que tinha suportado naqueles anos. Não atendeu as ligações e despachou um colega com fome, pelo interfone. Trepou em todas as posições possíveis, gritava de gozo abafando o canto celta da Enya, em looping, no som da sala. Acordava sozinha e dolorida e, em plena semana de provas, ia às aulas com o rosto assado da barba recente do amante. Às amigas, contava detalhes do sexo, das conversas, dos olhares do seu namorado.
Durou um mês. Um dia ele marcou um encontro, faltou, e no dia seguinte disse que não podia mais vê-la, que tinha “coisas” a serem resolvidas. Não era com ela, quem sabe ele voltasse um dia. Aspas gigantescas que nunca foram esclarecidas. Dois meses depois ele se formou. Por meio dos poucos amigos em comum, ficou sabendo que o ex-namorado estava numa fase de colecionar mulheres e fazer farra. D. interpretava: ele está triste e não está se apegando a ninguém. Deve estar com problemas sérios. Esperava que ele resolvesse o que poderia ser as tais “coisas” sobre as quais não se podia falar e logo voltasse pra ela. Concluiu: foi macumba.

F.
F. é um cara bem-sucedido. Desde criança – apesar de ter sido uma criança feia. Estudou nas melhores escolas católicas e cresceu estabelecendo os contatos considerados corretos em seu meio. O pai, advogado sócio de escritório renomado, a mãe, artista plástica especializada em quadros de orquídeas e marinas. F. tinha vocação pra liderança; foi escoteiro e chefe da torcida jovem do Coritiba. Todo final de ano recebia pelo menos três convites para passar as férias em apartamentos de colegas da escola na praia. Podia escolher. Era uma dessas pessoas que sempre teria opções, um privilegiado, um sócio vitalício do clube da classe média alta. Amado pela família, idolatrado pelos amigos, desejado pelas mulheres, respeitado pelos professores, pois sempre esteve na média, era uma pessoa perfeita, entre os seus. Não tinha consciência de seus valores, pois que não eram testados. Não chegava a ser preconceituoso pois não convivia com pobres, negros e evitava a proximidade com gays – não que precisasse: seu meio era limpo, asséptico, entre iguais, acreditava. Embora inteligente, nunca leu um livro que não valesse nota. Porém, adquiria para sua estante os livros de não-ficção indicados pela Veja. Quando ainda era raro, tinha em seu quarto uma TV com canais a cabo, mas gostava mesmo era das videocassetadas.
No dia em que ele conheceu D., estava extremamente entediado. Ela pediu que passasse o açúcar da sua mesa para adoçar seu chá – quem toma chá em cantina de faculdade? E ele acabou derrubando o açúcar sobre ela. “Açúcar dá sorte, ainda bem que não foi o sal”, ela disse. F. viu que seus olhos eram bonitos – e só. Adivinhou o interesse da mulher, pois todas sempre se jogavam à sua frente. Achou engraçado dar alguma atenção pra aquela moça com cara de senhora. Quem sabe ela fosse casada? Ainda não tinha passado por essa experiência. Só mocinhas afoitas do colégio marista, aquelas que sabiam seu sobrenome e a marca de seu carro. Conferiu-a de cima a baixo e pensou que ela devia usar adoçante. Mas a conversa em seguida foi agradável. O olhar esfomeado dela – entre a súplica e a oferta – era interessante. É verdade, ele ficou interessado em algo em D. que não sabia explicar. Depois, quando conheceu seu apartamento – e taí uma vantagem enorme, uma mulher que não morava com os pais e não exigia motel – deixou-se levar pelo sexo fácil, dedicado, abundante. F. estranhou seu corpo maduro e comentou “você é muito mulher”, o que a emocionou. Ela o mimava, acendia seu cigarro e trazia água gelada depois do sexo.
Então ele cansou e a dispensou. Nunca mais se viram.

23 de nov. de 2011

O Freezer

Dez dias de atraso menstrual e de repente entendi que o sexo é uma idiotice da qual eu devia ter escapado. Merda de instinto. A gente não passa mesmo de bicho. O que é uma trepada diante de tudo que pode me acontecer agora? Uma droga de uma trepada mal dada. Ainda nem sei como fazer direito. Camisinha. Um trocinho de borracha e da marca mais vagabunda. Seca, porque fico com vergonha de pedir uma lubrificada. Um pedaço de borracha pra acabar com a minha vida.
- “Minha mãe deixou um freezer novinho, de balcão de padaria, aí no fundo da casa. Quem sabe a gente pode vender” - sugere o Namorado. Parceiro. Sei lá. Ele mora numa república com os amigos. Estamos discutindo a questão à mesa da cozinha, desconfortáveis, como se estivéssemos – o que já fizemos, ali mesmo – estudando para uma prova.
- “Um freezer. É alguma coisa”.
É alguma coisa a que me apegar, porque por enquanto só eu percebo o drama. São cinco homens na casa e todos já sabem do atraso. Eles riem do meu desespero, enquanto passam para comer um pão, tomar uma água, buscar o material da faculdade ou do trabalho, e eu só posso tentar ser leve e rir também, pra esperar que seja tudo um engano.
Mas os dias continuam passando. Comecei a tomar chá, à noite. Não sei por que, a impressão é de que o chá vai me ajudar a eliminar isso que pode existir. Esse parasita. Essa impossibilidade. Essa rasteira. Deus, Deus. Se você existe. Se você olha por todo mundo como todos insistem. Eu te odeio. Se você olhou pra mim e achou que eu merecia isso, Deus. Vá se foder. Cheguei até aqui apesar de você não ter ajudado em nada. Aí eu entro na faculdade. Começo a aprender alguma coisa que vai me levar a algum lugar. Me cuido, porra. E tenho que passar por isso. Eu te odeio.
- A irmã do Carlos fez um aborto e ele foi junto.
- Oi, Carlos.
Carlos é aquela pessoa que você não sabe se tem amizade ou se está só observando. Está sempre presente, mas sua gentileza parece falsa, os olhos sempre rápidos, brilhantes. Inteligente, zomba e ofende sem parecer mau. Mas é divertido e afinal, agora, tem uma informação valiosa.
- Eu levo vocês lá na clínica.
- Eu não quero ir agora. Só quero saber o preço.
O namorado ligou pra mãe e contou da possibilidade de gravidez da namorada. Não sei se usou o termo namorada. Espero que não, que tenha me chamado de vagabunda. Quem sabe ela esquece a religião e manda dinheiro suficiente pro procedimento. Não conversamos direito, mais, não quero saber dele, nem de sexo, nem de mãos dadas, só quero me livrar de tudo isso, voltar a ser eu, a respirar na velocidade normal, a não ter mais essa dor no estômago, essa falta de ar. Eu não tenho nada, nem consigo ajudar no aluguel, sou um projeto. Não vou contar pra minha mãe, nem pra ninguém. Se os estranhos não me ajudarem, dou um jeito. Me atiro na frente de um ônibus. Posso morrer ou posso abortar. Só não posso sobreviver aleijada. Posso enfiar eu mesma uma agulha de tricô, mas não acho que vá dar certo. Acho que está na hora de começar a me informar sobre isso. Afinal, tanta gente morre de aborto todo ano, deve ter sei lá, o dobro disso de sobreviventes. Enquanto isso, sigo fumando e tomando meus chás.
Mais cinco dias. A clínica fica na Praça Osório. Todo mundo já ouviu falar. Os dois chegam bêbados de uma cerveja, depois da aventura. Dois homens – vá lá, garotões – foram à clínica de aborto. Seria engraçado se... bem, foi engraçado sim. Não durmo direito há semanas, vivo tentando disfarçar o desespero e esperando que no dia seguinte o sangue flua como tem que ser. E nada. Mas ainda rio do jogral improvisado, irresponsável, dos dois amigos. Eles são homens e podem escolher como uma gravidez vai atingi-los.
- O médico é gente boa.
- Só tem as unhas nojentas.
- Como assim, entraram os dois juntos?
- A gente falou que não sabe de quem é o filho.
- E que vamos rachar a conta.
O preço é alto. Se tivéssemos cinco freezers à disposição, ainda assim, faltaria dinheiro. Conversamos agora sobre a possibilidade de passar um cheque sem fundo. Em casa, disfarçadamente, levanto a camiseta à frente do espelho pra ver como está a barriga. Olho pro meu rosto e não entendo como ninguém percebe que meu olhar mudou. Estou prestes a fazer alguma coisa muito definitiva. Muito ruim. Acho que virei adulta.
Deito na cama e penso por que não sou como as outras e não vejo ali alguma possibilidade boa? Uma criança, um neto, um filho, algo que me dê força de vontade, que me dê motivo pra viver. Passo a mão na barriga. Não. Não tem nada ali. Quero dizer, mesmo que houvesse, não há nada, pra mim. Só o meu futuro completamente mudado. E só o meu. O Namorado, esse, pode continuar vivendo. No máximo vai ter que pagar uma pensão – no dia em que tiver um trabalho. Até lá, hipoteticamente, a criança já estaria falando. Mas eu me recuso. Não vou passar por isso. Meu deus, como eu me odeio.
No dia seguinte me encontro com as duas únicas amigas que sabem da minha espera – taí um termo inadequado – na Reitoria. Vamos ao último andar, sentamos no chão, em frente aos janelões que têm vista para o pátio, doze andares abaixo. Elas tentam me animar. Afinal, minha vida pode mudar durante algum tempo, mas depois eu retomo tudo. Eu ainda não consigo chorar. Uma zeladora passa e pergunta se está tudo bem. Estranho. Uma das amigas lembra, compartilhando o último cigarro, o suicídio de um aluno, dois anos antes. Ele se jogou exatamente daquela janela e quase atingiu o reitor, que ficou com a calça toda respingada de sangue. Não colocaram grade nem nada porque seria infantilizar o público universitário, disse o presidente do Diretório Acadêmico. Então ainda é assim: só abrir e pular.

17 de nov. de 2011

Ensaio para personagem #1

Ele não recebeu menos comida nem apanhou mais que os outros meninos da família. Parecia até igual a todos. Porém, caso alguém prestasse atenção, veria que seu desenvolvimento intelectual, em algum ponto da primeira infância, estava ligeiramente aquém do normal. Se sua aparência, por um lado, expunha a leve deficiência – olhos e nariz pequenos, juntos, queixo recolhido, formando uma feição de marmota – a precariedade do ensino à disposição naquela cidade que era pouco mais que uma vila, um distrito, permitia-lhe manter-se na média. Em casa, irmão mais novo, era o único que estudava à tarde. Ao acordar, a mãe servia café quentinho, passando na fatia grossa de pão caseiro primeiro uma camada de margarina e por cima, uma de geléia. Regalias invejadas pelos dois irmãos, que saíam de barriga vazia na geada, sempre atrasados. Mas às vezes ela abria um baú e tirava de lá o vestido vermelho desbotado de quando era menina, e o vestia com ele. Na sala pequena, quentinha do vapor do ferro de passar, dançavam, riam, e ela o fazia prometer nunca contar o segredo pra ninguém. Um dia o vestido ficou apertado demais e a mãe, olhando vidrada para seu corpinho, ainda pequeno, mas já tomando forma, bronzeado dos dias de verão na rua, sussurrou com voz rouca: “vamos parar com essa brincadeira, não tem mais graça. Esqueça”.
Cresceu sem chamar atenção. A pele boa dos antepassados indígenas impediu que as espinhas marcassem a adolescência e acabou se saindo bem nas tentativas de namoro – se esfregou nos portões e debaixo de árvores escuras com duas ou três meninas com vocabulário tão escasso e instinto tão alerta quanto os seus. Descobriu o sexo, completo, com uma vizinha mais velha, ninfomaníaca, que apanhava de cinta do pai, semana sim, semana não, ao sabor das fofocas ou das reclamações da direção da escola. Com ela, foi além da performance convencional própria da idade: percebeu ser capaz de dar prazer. Fez sucesso no Exército, poucos anos mais tarde, quando ensinava aos amigos requintadas sacanagens para treinar com as prostitutas, que esperavam o fim do turno, no lado de fora do quartel.
Ainda de cabeça raspada e com a ajuda do tio vereador, passou no concurso da prefeitura local. Um cargo simples e mal pago. No serviço - mero batedor de carimbos - cometia o limite máximo de faltas permitido ao ano, antes mesmo da Páscoa. Depois disso passava a inventar dores misteriosas pelo corpo e conseguia mais alguns dias de atestado médico, para juntar com os feriados. Ninguém sentia sua falta. Pessoa de poucas palavras, pouco sabia além do que acreditava entender do Jornal Nacional. De sua convivência com alguns soldados da capital, aprendeu a ser contra o Sistema – que identificava no presidente eleito ou no dono da padaria que dava o troco em balas.
Discretamente, vivia para as mulheres. Fazia a alegria das viúvas mofadas, das solteironas desiludidas, das carolas biscatinhas. Divertia-se vendo-as gemer e sofrer sob seu corpo, em todas as posições possíveis, em situações arriscadas, ousadas, ridículas: trepando na beira de um rio gelado, chupando-lhes a buceta enquanto costuravam à frente da janela, dando bom-dia pros transeuntes, no salão paroquial antes da catequese. Sempre em segredo. Às vezes ele pedia que colocassem um vestido vermelho. Daí, batia.

14 de nov. de 2011

Fora da ordem

Ela chegou da escola, a casa aberta, sem ninguém dentro. Não fosse o sol ardido, poderia até ter sentido medo. Jogou a pasta sobre a cama, apesar de suja, porque a usava como assento para ver os jogos de futebol no recreio, na quadra de terra roxa, sem bancos para a torcida de meninas. Foi pra cozinha esquentar as panelas deixadas pela mãe, com o almoço pronto, na noite anterior. Arroz, feijão, carne moída com pimentão. Foi pro quintal pegar a alface pra salada e lá encontrou o pai. Ainda estava se acostumando à sua presença em casa. Depois de 20 anos, ele tinha sido “encostado” pelo Inamps pra se tratar. Cidade pequena, a quem perguntasse do que se tratava, a resposta padrão seria: coluna. E de fato o pai era dono de uma corcunda dolorida. Mas o acordo para sua dispensa tinha sido causado pelo alcoolismo, que reduziu a produção, minou a possibilidade de chefia e contaminou o ambiente de trabalho. Foi a gota d’água pra ele, que há anos dormia sozinho, a mulher no quarto da filha mais velha que foi estudar e trabalhar na capital. Decidiu parar de beber, internou-se numa daquelas colônias agrícolas dirigidas por crentes e onde são misturados loucos, alcoólatras e drogados. Teve alguns momentos ruins e outros bons, como o serviço de roça, o qual – jamais imaginaria – até lhe fazia bem, ao reviver momentos da infância.
- Oi filha, olha o que eu achei no nosso quintal.
- Um saco de lixo, pai. Deve ter voado do vizinho.
- Você não tá vendo? É uma santa – afirmou, levantando as pupilas dilatadas para ela, um olhar de atravessar parede e ao mesmo tempo, perdido.
- Ihhhh. Tá louco, pai, isso é um saco de lixo. Tá lavando o lixo pra quê? Não tem santa nenhuma aí.
- É uma santa, filha, veio proteger a gente. Vou limpar e você vai ver como é. Tua mãe vai chegar e vou colocar a santa na sala.
- Vou fazer a salada, pai.
- Não vou almoçar enquanto não tiver limpado direitinho.
- Ok.
A mãe chegou pro almoço e foi avisada da novidade. Era mais um passo daquela novidade do marido sem beber. Passada a fase do choro e das tremedeiras, era a hora do delirium tremens. Elas foram avisadas. Era um mal necessário, pois provava que realmente ele não engolia mais uma gota de álcool. As facas e até o revólver antigo tinham sido escondidos pra evitar qualquer perigo. Mas as alucinações até agora tinham sido mansas. Ele via o pai, morto há mais de dez anos; o cavalo, os amigos de infância. E agora essa, de santa – logo ele que tinha “nojo” de igreja. Resignou-se. Almoçaram as duas, juntas, ouvindo o barulho da água saindo da mangueira, no quintal, na operação de limpeza da tal santa. “E se nunca ficar normal?”, pensou a mãe, com um arrepio.
A mãe voltou ao trabalho, a menina lavou a louça.
- Pai, vou na casa da Amiga estudar, saia do sol e vá almoçar.
Abriu o portão e foi pra rua sem ouvir a resposta. Engraçado isso de louco manso, pensava: mesmo quando o pai era um bêbado em último grau, coisa de meses atrás, jamais esperou um ataque violento ou um ato realmente “louco” dele, uma pessoa basicamente boa, apesar de todo o mal que fazia involuntariamente. Ela, por exemplo, podia estar no time das vencedoras. Das meninas que planejam seus bailes de debutantes, que sabem o que vão fazer quando crescer, que convivem com famílias normais, que se freqüentam, como nas novelas, que não precisam olhar pra trás toda hora nem se esconder pra não passar vergonha da própria família, o pai sendo patético e a mãe, mártir. Mas ela se atrasou pra Primeira Comunhão porque o pai bateu o carro na esquina da Igreja. Ela era a filha do motivo de riso e de pena de qualquer reunião.
Chegando à casa da Amiga, encontrou-a sentada na calçada, à sombra da árvore, uma das poucas da rua, ou melhor, da cidade toda. Tomando água num copo alto cheio de gelo.
- Fazendo o quê aqui fora?
- Minha mãe tá surtando. Falando sozinha.
A mãe da Amiga era esquizofrênica e, assim como seu pai, tinha passado um tempo numa clínica. Comparando-se com ela, a menina sentia-se até sortuda, porque mal ou bem ainda tinha pai pra sustentar a casa – pelo menos por um bom tempo. A Amiga vivia sendo cuidada por várias tias e amigos. Sua mãe já tinha sido aposentada por motivos psiquiátricos. Tentou se matar algumas vezes, passava dias chorando. Ou ficava muito bem e chamava as vizinhas pra ensinar a fazer crochê e casinha de abelha em panos de prato. A Amiga não sabia o que era rotina.
- Meu pai tá lavando um saco de lixo, achando que é uma santa.
- Que bosta.
- Pois é, que bosta.
- E amanhã tem prova de Matemática.
- Que bosta.
- Vamos pra biblioteca da escola, estudar?
- Vamos. Senão vão dizer que a gente não se esforça.

11 de nov. de 2011

Agora é sério

Este blog vai ser um exercício para - ahan - novos projetos em andamento. Aqui vou escrever o que não posso, me sinto constrangida ou que não gostaria de ver divulgado no Pergunte ao Pixel. Só minha turma mais chegada - e não mandei convite pra todo mundo ainda, faltam-me e-mails de todos (as) - vai poder ler e comentar. Nosso segredinho, ok? Beijocas. <3


PS - ah sim, blog é so last season, então provavelmente vai ser uma decepção e não tenham muitas expectativas com isso etc.