7 de jul. de 2012

O Casamento Crente

As trombetas estão desafinadas. O vô da noiva quase desmaiou de susto. Pare com isso, Maria de Fátima. Isso lá é hora de querer rir, no altar, com a noiva do teu filho entrando. Coitadinha, até que está bonita. Olha a cara do João. Tá lindo, meu filho. Vou chorar de novo, ainda bem que o rímel não sai com água. Meu filho. Meu filhinho adorado. O tanto que me fez querer morrer. O quanto quis que ele não existisse, meu Deus, não posso pensar nessas coisas, não aqui. Mas agora passou, graças a Deus passou, olha que coisa linda, de terno. Nem parece aquele lixo que o pai ia pegar na boca toda semana, chapado, vomitado. Aquele menino esperto que era, que me tirava o fôlego de tanto correr, era tão bonzinho, tão sensível. Nós fomos um fracasso, pai e mãe de merda. Demos tudo o que o menino precisava, pra virar naquilo. Um drogado, um desgosto. Mas passou, concentra nisso, passou. Agora essa menina vai cuidar dele, essa igreja dela vai tomar todo o tempo deles, Deus, meu Deus, você não aceitou quando eu rezei as minhas novenas, a gente se rendeu a esses cultos intermináveis com essa gritaria. Mas eles curaram meu João, olha a cara dele, tá feliz, tá livre da droga já faz um ano, casando, meu Deus. Olha por eles, faz com que eu tenha algum sossego nessa vida. Amém. Ou aleluia.

Meu guri tá de pé, de novo. A Fátima bem que podia segurar um pouco esse choro. Aperto a mão pra dar uma força e ela já desmorona. Mãe de noivo chora, mas no nosso caso não pega bem. Já basta esse discurso do pastor. Eles salvam as almas pra jogar na cara o tempo todo, porra. Que azar, nora filha de pastor. Bem, eu que não queria estar na pele dele. João tá bem, tá centrado, se recuperou graças a essa menina aí, vai continuar assim, vai sim. Que missa mais bagunçada. Culto. Ah, João, João, pelo amor de Deus, escute isso que o homem tá te falando. A menina é a princesinha dele, tá todo mundo aqui te julgando. Estão te fazendo um favor de te aceitar, isso está bem claro. Por isso que você virou esse crente cego, mas o que é que eu estou pensando? Viva de bíblia na mão, se é pra tomar o lugar da pedra de crack. Meu filho, eu te vi morto, de tiro ou de droga, eu já esperava por isso, já tinha desistido de você. Prova pra eles que você pode, volta a ser aquele menino. Aquele que me amava tanto. Hoje você não me olha nos olhos. Eles te salvaram, eu não devia me sentir humilhado, aqui exposto, nesse altar. O homem que salvou meu filho da droga cita o Facebook no casamento da filha, Jesus amado. Vai ver é esse o problema, Deus me castigou por soberba. Foi aqui nessa garagem com essa gente sem ritual, sem chefe, sem cruz, que você se encontrou. Só posso agradecer. Acho que agora eles declaram marido e mulher. Mas que diacho essas trombetas.

Eu entendi, Jesus, é uma prova eu ter que casar minha filha com um drogado que eu mesmo internei e doutrinei. Podia ter deixado morrer. Tava quase lá. Queria poder pregar hoje com mais força mas só consegui implorar que ele cuide, que ame. “O segredo do casamento é o amor; ame, ame”. Patético. Ele ama os pais e o que fez com eles? Mentiu, roubou, vai saber que miséria deve ter feito pra conseguir cada grama de pó, cada pedra. O que ele vai fazer com a minha filhinha, meu Jesus, não me deixe pensar nisso. Tão linda, pura. Eu estou entregando minha filha em sacrifício, Senhor Jesus?

É o dia mais feliz da minha vida. Está tudo lindo. A decoração, a daminha andou direitinho até o altar. João está lindo. Eu só queria parar de pensar que depilei o cu. Pai, me desculpa, eu não tô te ouvindo, estou tão excitada. Um mês preparando esse casamento, os docinhos ficaram perfeitos, o vestido nem tanto porque a costureira da loja de aluguel não acertou muito bem a costura, está penicando. Mas ninguém tinha ainda me preparado para a depilação íntima. Que medo, que delícia, como é que vai ser? Me desculpe, pai, eu te respeitei e estou aqui virgem, de branco, mas não consigo orar, estou pecando, pecando, há meses eu venho pecando com os piores pensamentos. Há meses eu venho fazendo coisas que eu espero que o Senhor Nosso Jesus não veja, debaixo das cobertas, sozinha. No carro, com o João quando você e os irmãos não estão por perto. Que cerco vocês fizeram. Só me deu mais vontade. E agora chegou a hora, Meu Deus, que ele seja bom comigo.

3 de jun. de 2012

Lázara

Metade índia guarani, metade guaipeca. Vivia no mato com os irmãos, entre oito e dez, não sabia precisar, mais a mãe e o pai que saíam de manhã e voltavam à noite do trabalho, um com uma foice, o outro com uma pá. A irmã mais velha fazia a comida no tacho e à medida que os irmãos iam crescendo, iam também sumindo no rastro dos pais, levando seus próprios instrumentos. Era sempre assim, todo dia. Não tinham televisão, a distração da noite eram as estrelas, o que tinha pra comer, as brincadeiras com os irmãos menores, debaixo das cobertas até a mãe mandar pararem de risinho e dormir. Quando chegou sua vez de ser a mais velha que preparava o arroz com feijão, Lázara sumiu também; sem pá nem rastelo, no entanto.

Emprestada pra trabalhar de babá na cidade. Primeira medida foi ensinar-lhe a tomar um bom banho e a cortar as unhas. Dócil, olhos baixos, vivia no emprego e logo se dizia que era da família. Salário não havia, o serviço era pesado, mas a cama e a comida eram boas e a patroa fez questão que estudasse no supletivo noturno. Os anos passaram e as crianças cresceram. O casal se separou e ela foi indicada pra trabalhar num supermercado, já que com as novas caixas registradoras ninguém precisa ser um gênio da matemática. Morava numa meia-água de uma tia da antiga patroa. Com 18 anos ficou grávida do segurança do mercado. Ele bateu e chutou, quando soube. No Pronto Socorro, passada a cachaça, chorou de arrependimento e prometeu casamento na frente do policial. Foram embora pra capital. 

O segundo filho foi encomendado para segurar o marido ciumento. Com seu salário de merendeira terceirizada da escola municipal da região metropolitana, Lázara deu entrada num terreno de um loteamento irregular. As crianças cresceram à beira da BR, vizinhos de um desmanche e de um curioso lixão de geladeiras e fogões. Mas a casa de madeira, com vitrôs que um dia receberiam alguma pintura, era seu orgulho, seu único bem na vida.

Um dia morreu um irmão com a mulher num acidente. Deixaram duas crianças, um menino e uma menina. Não havia notícia do resto da família. Ou ela os assumia, ou iriam para um orfanato. Com a idade que tinham não havia qualquer chance de adoção. E sejamos claros, com a cara que tinham também – o sangue guarani no nariz achatado e olhos puxados. Lázara já não via os filhos e, quando os encontrava, depois de um dia inteiro de trabalho, mais as duas horas de ônibus e quarenta minutos de caminhada, não tinham o que dizer uns aos outros. O marido passava a noite como segurança de fábrica e durante o dia, dormia. Balançou os ombros, mandou que trouxessem os outros dois. Amontoaram-se na casa de duas peças, repetindo as cenas de sua infância, os risinhos debaixo do cobertor.

As crianças tinham raiva da escola, distante demais, gelada, e as coisas não entravam nas suas cabeças, os lápis pareciam não caber nas mãos, a merenda era repetitiva e ruim. Sem adulto por perto, matavam aula para pedir balas nas portas dos bares. 

O mais velho começou a roubar para pagar o crack. Ela não pôde mais ignorar quando levou-lhe a panela de pressão. Lázara tentou interná-lo numa clínica de crentes – até se fez de evangélica e frequentou alguns cultos, perdendo as poucas horas de descanso aos domingos – mas não foi possível. A internação teria de ser espontânea e o menino já tinha se transformado num zumbi sem qualquer outra vontade que não fosse o crack. 

O filho mais novo engravidou uma menina e foi morar com os sogros, do outro lado da cidade. O sobrinho foi preso por assalto à mão armada. A menina, acostumada à promiscuidade da cama única com os primos e irmão, logo começou a passar noites fora de casa. 

Lázara foi parar no Hospital Psiquiátrico. Ao médico do posto de saúde, que vinha lhe receitando calmantes, disse que iria se matar se passasse mais um dia na sua casa, seu único bem. Com uma olhada rápida na ficha o doutor acreditou e recomendou a internação. 

Nos horários de visitas, às terças, quintas e sábados, Lázara não recebia visitas. O médico compadeceu-se e telefonou para o trabalho de seu marido. Disse que ela precisava de amor da família. Que o filho viciado devia ir ver o estado em que deixou a mãe. Que a sobrinha lhe devia consideração. Que ela precisava pelo menos ver o neto. 

"Mas o senhor tem que entender o meu lado. Ela só falava de um tal colega que trabalha na limpeza da escola. Chegou em casa à meia-noite e disse que foi porque teve que fornecer lanche pra uma reunião. Eu liguei pra escola no dia seguinte e não tinha reunião nenhuma, doutor. Aí eu falei pra ela que se está me botando corno, então eu vou embora, porque posso não servir pra nada, mas sou homem".

Então que depois de tudo, Lázara surtou foi por culpa.

30 de abr. de 2012

O Sobrado

Era a terceira vez que eles saíam juntos. Professores; ela da rede pública – Geografia. Ele, pós-doutor em Matemática, professor da Federal. Tinham se conhecido num site de relacionamentos, gratuito. Já fazia tempo que não se viam. O papo não era dos mais animados e também não havia muita química entre eles, mas eram as alternativas que restavam para cada um, naquele feriado prolongado. Dia do Trabalho ou Dia do Trabalhador? - tinha sido a discussão do jantar regado a vinho da casa, mignon e talharim ao pesto. Tudo morno. Mas ela tinha decidido dar uma chance ao destino. Vai que justamente aquele sem-graça, sem sal, sem grana, sem beleza, aquele funcionário público desacostumado a emoções, se revela ser “aquele” que ela espera há tanto tempo? Que vai esquentar seus pés, dedicar-lhe amor cego, dar seu sobrenome ao seu filho, quem sabe ele não seja uma piada de mau gosto como foram os outros (aqueles que são lembrados pela família pelos apelidos – “o escroto”, “o fascistinha”, “o picareta”)?
Mas os bocejos vêm e ela bebe um pouco mais. Findo o jantar, ele a convida para conhecer seu sobrado novo. Três andares, na parte de baixo, a cozinha e a sala, no primeiro andar dois quartos, no segundo duas suítes e lá em cima um ático – ele adora ter, e falar que tem “um ático”. Nem imagina que Ático era o nome do primeiro namorado dela. Quanto tinha 13 anos, o mundo, os meninos, o futuro. Ela dá um sorrisinho, “vamos lá ver seu ático”.
Na saída, eles trocam um beijo; a caminho do sobrado, num bairro classe média, familiar, encostam os cotovelos quando ele troca as marchas no carro apertado. Ao chegar no tal sobrado, ele vira as chaves, acende a luz e fica de lado para que ela passe. No hall de entrada, um quadro com a foto de seu... companheiro? Parceiro?
Enfim. A foto dele, o dono do sobrado. Vestido de Batman.
“Mas o que é isso?”, pergunta, atônita. “É uma foto que uns alunos fizeram numa festa a fantasia, adoro essa foto”.
“Adora?”, espanta-se ainda mais. A foto é bizarra. Ele está de máscara, os cabelos ruivos saindo por debaixo dela, um sorriso franco, aberto, estúpido. As mãos na cintura – no cinto de utilidades. O uniforme nem mesmo é dos filmes mais recentes de Batman, é do tempo da série.
“Sim, eu adoro o Batman, não comentei com você?” e entra, acendendo as luzes da sala conjugada à cozinha, por onde se espalham, sobre as estantes, o aparelho de TV, o balcão e até sobre o micro-ondas dezenas, talvez uma centena, de pequenas estátuas de Batman. Batman de biscuit, Batman de gesso, Batman de borracha e até, pelo amor de deus, Batman de cristal. “Meus alunos sabem que sou fissurado em tudo de Batman e sempre me dão esses presentinhos”.
“Esses teus alunos são uns bons filhos-da-puta, isso sim, seu nerd ridículo”, ela pensa.
Caminha entre os mini-Batmans, pega um pela mão, quebra disfarçadamente um bat-apetrecho. “Acho que vou deixar o ático pra outro dia. Hoje fico só com a bat-caverna. Me chama um táxi?”
Logo, ambos desistiram dos sites de relacionamento.