3 de jun. de 2012

Lázara

Metade índia guarani, metade guaipeca. Vivia no mato com os irmãos, entre oito e dez, não sabia precisar, mais a mãe e o pai que saíam de manhã e voltavam à noite do trabalho, um com uma foice, o outro com uma pá. A irmã mais velha fazia a comida no tacho e à medida que os irmãos iam crescendo, iam também sumindo no rastro dos pais, levando seus próprios instrumentos. Era sempre assim, todo dia. Não tinham televisão, a distração da noite eram as estrelas, o que tinha pra comer, as brincadeiras com os irmãos menores, debaixo das cobertas até a mãe mandar pararem de risinho e dormir. Quando chegou sua vez de ser a mais velha que preparava o arroz com feijão, Lázara sumiu também; sem pá nem rastelo, no entanto.

Emprestada pra trabalhar de babá na cidade. Primeira medida foi ensinar-lhe a tomar um bom banho e a cortar as unhas. Dócil, olhos baixos, vivia no emprego e logo se dizia que era da família. Salário não havia, o serviço era pesado, mas a cama e a comida eram boas e a patroa fez questão que estudasse no supletivo noturno. Os anos passaram e as crianças cresceram. O casal se separou e ela foi indicada pra trabalhar num supermercado, já que com as novas caixas registradoras ninguém precisa ser um gênio da matemática. Morava numa meia-água de uma tia da antiga patroa. Com 18 anos ficou grávida do segurança do mercado. Ele bateu e chutou, quando soube. No Pronto Socorro, passada a cachaça, chorou de arrependimento e prometeu casamento na frente do policial. Foram embora pra capital. 

O segundo filho foi encomendado para segurar o marido ciumento. Com seu salário de merendeira terceirizada da escola municipal da região metropolitana, Lázara deu entrada num terreno de um loteamento irregular. As crianças cresceram à beira da BR, vizinhos de um desmanche e de um curioso lixão de geladeiras e fogões. Mas a casa de madeira, com vitrôs que um dia receberiam alguma pintura, era seu orgulho, seu único bem na vida.

Um dia morreu um irmão com a mulher num acidente. Deixaram duas crianças, um menino e uma menina. Não havia notícia do resto da família. Ou ela os assumia, ou iriam para um orfanato. Com a idade que tinham não havia qualquer chance de adoção. E sejamos claros, com a cara que tinham também – o sangue guarani no nariz achatado e olhos puxados. Lázara já não via os filhos e, quando os encontrava, depois de um dia inteiro de trabalho, mais as duas horas de ônibus e quarenta minutos de caminhada, não tinham o que dizer uns aos outros. O marido passava a noite como segurança de fábrica e durante o dia, dormia. Balançou os ombros, mandou que trouxessem os outros dois. Amontoaram-se na casa de duas peças, repetindo as cenas de sua infância, os risinhos debaixo do cobertor.

As crianças tinham raiva da escola, distante demais, gelada, e as coisas não entravam nas suas cabeças, os lápis pareciam não caber nas mãos, a merenda era repetitiva e ruim. Sem adulto por perto, matavam aula para pedir balas nas portas dos bares. 

O mais velho começou a roubar para pagar o crack. Ela não pôde mais ignorar quando levou-lhe a panela de pressão. Lázara tentou interná-lo numa clínica de crentes – até se fez de evangélica e frequentou alguns cultos, perdendo as poucas horas de descanso aos domingos – mas não foi possível. A internação teria de ser espontânea e o menino já tinha se transformado num zumbi sem qualquer outra vontade que não fosse o crack. 

O filho mais novo engravidou uma menina e foi morar com os sogros, do outro lado da cidade. O sobrinho foi preso por assalto à mão armada. A menina, acostumada à promiscuidade da cama única com os primos e irmão, logo começou a passar noites fora de casa. 

Lázara foi parar no Hospital Psiquiátrico. Ao médico do posto de saúde, que vinha lhe receitando calmantes, disse que iria se matar se passasse mais um dia na sua casa, seu único bem. Com uma olhada rápida na ficha o doutor acreditou e recomendou a internação. 

Nos horários de visitas, às terças, quintas e sábados, Lázara não recebia visitas. O médico compadeceu-se e telefonou para o trabalho de seu marido. Disse que ela precisava de amor da família. Que o filho viciado devia ir ver o estado em que deixou a mãe. Que a sobrinha lhe devia consideração. Que ela precisava pelo menos ver o neto. 

"Mas o senhor tem que entender o meu lado. Ela só falava de um tal colega que trabalha na limpeza da escola. Chegou em casa à meia-noite e disse que foi porque teve que fornecer lanche pra uma reunião. Eu liguei pra escola no dia seguinte e não tinha reunião nenhuma, doutor. Aí eu falei pra ela que se está me botando corno, então eu vou embora, porque posso não servir pra nada, mas sou homem".

Então que depois de tudo, Lázara surtou foi por culpa.

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