17 de nov. de 2011

Ensaio para personagem #1

Ele não recebeu menos comida nem apanhou mais que os outros meninos da família. Parecia até igual a todos. Porém, caso alguém prestasse atenção, veria que seu desenvolvimento intelectual, em algum ponto da primeira infância, estava ligeiramente aquém do normal. Se sua aparência, por um lado, expunha a leve deficiência – olhos e nariz pequenos, juntos, queixo recolhido, formando uma feição de marmota – a precariedade do ensino à disposição naquela cidade que era pouco mais que uma vila, um distrito, permitia-lhe manter-se na média. Em casa, irmão mais novo, era o único que estudava à tarde. Ao acordar, a mãe servia café quentinho, passando na fatia grossa de pão caseiro primeiro uma camada de margarina e por cima, uma de geléia. Regalias invejadas pelos dois irmãos, que saíam de barriga vazia na geada, sempre atrasados. Mas às vezes ela abria um baú e tirava de lá o vestido vermelho desbotado de quando era menina, e o vestia com ele. Na sala pequena, quentinha do vapor do ferro de passar, dançavam, riam, e ela o fazia prometer nunca contar o segredo pra ninguém. Um dia o vestido ficou apertado demais e a mãe, olhando vidrada para seu corpinho, ainda pequeno, mas já tomando forma, bronzeado dos dias de verão na rua, sussurrou com voz rouca: “vamos parar com essa brincadeira, não tem mais graça. Esqueça”.
Cresceu sem chamar atenção. A pele boa dos antepassados indígenas impediu que as espinhas marcassem a adolescência e acabou se saindo bem nas tentativas de namoro – se esfregou nos portões e debaixo de árvores escuras com duas ou três meninas com vocabulário tão escasso e instinto tão alerta quanto os seus. Descobriu o sexo, completo, com uma vizinha mais velha, ninfomaníaca, que apanhava de cinta do pai, semana sim, semana não, ao sabor das fofocas ou das reclamações da direção da escola. Com ela, foi além da performance convencional própria da idade: percebeu ser capaz de dar prazer. Fez sucesso no Exército, poucos anos mais tarde, quando ensinava aos amigos requintadas sacanagens para treinar com as prostitutas, que esperavam o fim do turno, no lado de fora do quartel.
Ainda de cabeça raspada e com a ajuda do tio vereador, passou no concurso da prefeitura local. Um cargo simples e mal pago. No serviço - mero batedor de carimbos - cometia o limite máximo de faltas permitido ao ano, antes mesmo da Páscoa. Depois disso passava a inventar dores misteriosas pelo corpo e conseguia mais alguns dias de atestado médico, para juntar com os feriados. Ninguém sentia sua falta. Pessoa de poucas palavras, pouco sabia além do que acreditava entender do Jornal Nacional. De sua convivência com alguns soldados da capital, aprendeu a ser contra o Sistema – que identificava no presidente eleito ou no dono da padaria que dava o troco em balas.
Discretamente, vivia para as mulheres. Fazia a alegria das viúvas mofadas, das solteironas desiludidas, das carolas biscatinhas. Divertia-se vendo-as gemer e sofrer sob seu corpo, em todas as posições possíveis, em situações arriscadas, ousadas, ridículas: trepando na beira de um rio gelado, chupando-lhes a buceta enquanto costuravam à frente da janela, dando bom-dia pros transeuntes, no salão paroquial antes da catequese. Sempre em segredo. Às vezes ele pedia que colocassem um vestido vermelho. Daí, batia.

10 comentários:

  1. Menina, tô pasma. Onde estavam essas coisas todas? Amei.

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  2. Dona Tina. Que bom que você abriu esse baú. Que sorte a nossa. Que texto maravilhoso (ai, vou ficar repetitiva como um sapo).

    Fiquei esperando o vestido vermelho. Uau.

    Beijo
    Rita

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  3. isso ai, Rita, que sorte a nossa. Obrigada

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  4. Carolas biscatinhas e crentes do rabo quente também dão (ui, ai) deliciosas (ai, ui) personagens.
    Curti muito o final dúbio.

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  5. Fiquei pensando onde daria (ui) o vestido vermelho; um transexual seria óbvio demais.

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  6. Tô passada, Cristina.
    onde a escritora havia se escondido esse tempo todo?
    amei.

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  7. Simplesmente amei, cara amiga Rodriguiana!

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  8. eu sempre acho que essas pessoas que ninguém nota são as que têm as melhores histórias. adorei o texto, tina =)

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