14 de nov. de 2011

Fora da ordem

Ela chegou da escola, a casa aberta, sem ninguém dentro. Não fosse o sol ardido, poderia até ter sentido medo. Jogou a pasta sobre a cama, apesar de suja, porque a usava como assento para ver os jogos de futebol no recreio, na quadra de terra roxa, sem bancos para a torcida de meninas. Foi pra cozinha esquentar as panelas deixadas pela mãe, com o almoço pronto, na noite anterior. Arroz, feijão, carne moída com pimentão. Foi pro quintal pegar a alface pra salada e lá encontrou o pai. Ainda estava se acostumando à sua presença em casa. Depois de 20 anos, ele tinha sido “encostado” pelo Inamps pra se tratar. Cidade pequena, a quem perguntasse do que se tratava, a resposta padrão seria: coluna. E de fato o pai era dono de uma corcunda dolorida. Mas o acordo para sua dispensa tinha sido causado pelo alcoolismo, que reduziu a produção, minou a possibilidade de chefia e contaminou o ambiente de trabalho. Foi a gota d’água pra ele, que há anos dormia sozinho, a mulher no quarto da filha mais velha que foi estudar e trabalhar na capital. Decidiu parar de beber, internou-se numa daquelas colônias agrícolas dirigidas por crentes e onde são misturados loucos, alcoólatras e drogados. Teve alguns momentos ruins e outros bons, como o serviço de roça, o qual – jamais imaginaria – até lhe fazia bem, ao reviver momentos da infância.
- Oi filha, olha o que eu achei no nosso quintal.
- Um saco de lixo, pai. Deve ter voado do vizinho.
- Você não tá vendo? É uma santa – afirmou, levantando as pupilas dilatadas para ela, um olhar de atravessar parede e ao mesmo tempo, perdido.
- Ihhhh. Tá louco, pai, isso é um saco de lixo. Tá lavando o lixo pra quê? Não tem santa nenhuma aí.
- É uma santa, filha, veio proteger a gente. Vou limpar e você vai ver como é. Tua mãe vai chegar e vou colocar a santa na sala.
- Vou fazer a salada, pai.
- Não vou almoçar enquanto não tiver limpado direitinho.
- Ok.
A mãe chegou pro almoço e foi avisada da novidade. Era mais um passo daquela novidade do marido sem beber. Passada a fase do choro e das tremedeiras, era a hora do delirium tremens. Elas foram avisadas. Era um mal necessário, pois provava que realmente ele não engolia mais uma gota de álcool. As facas e até o revólver antigo tinham sido escondidos pra evitar qualquer perigo. Mas as alucinações até agora tinham sido mansas. Ele via o pai, morto há mais de dez anos; o cavalo, os amigos de infância. E agora essa, de santa – logo ele que tinha “nojo” de igreja. Resignou-se. Almoçaram as duas, juntas, ouvindo o barulho da água saindo da mangueira, no quintal, na operação de limpeza da tal santa. “E se nunca ficar normal?”, pensou a mãe, com um arrepio.
A mãe voltou ao trabalho, a menina lavou a louça.
- Pai, vou na casa da Amiga estudar, saia do sol e vá almoçar.
Abriu o portão e foi pra rua sem ouvir a resposta. Engraçado isso de louco manso, pensava: mesmo quando o pai era um bêbado em último grau, coisa de meses atrás, jamais esperou um ataque violento ou um ato realmente “louco” dele, uma pessoa basicamente boa, apesar de todo o mal que fazia involuntariamente. Ela, por exemplo, podia estar no time das vencedoras. Das meninas que planejam seus bailes de debutantes, que sabem o que vão fazer quando crescer, que convivem com famílias normais, que se freqüentam, como nas novelas, que não precisam olhar pra trás toda hora nem se esconder pra não passar vergonha da própria família, o pai sendo patético e a mãe, mártir. Mas ela se atrasou pra Primeira Comunhão porque o pai bateu o carro na esquina da Igreja. Ela era a filha do motivo de riso e de pena de qualquer reunião.
Chegando à casa da Amiga, encontrou-a sentada na calçada, à sombra da árvore, uma das poucas da rua, ou melhor, da cidade toda. Tomando água num copo alto cheio de gelo.
- Fazendo o quê aqui fora?
- Minha mãe tá surtando. Falando sozinha.
A mãe da Amiga era esquizofrênica e, assim como seu pai, tinha passado um tempo numa clínica. Comparando-se com ela, a menina sentia-se até sortuda, porque mal ou bem ainda tinha pai pra sustentar a casa – pelo menos por um bom tempo. A Amiga vivia sendo cuidada por várias tias e amigos. Sua mãe já tinha sido aposentada por motivos psiquiátricos. Tentou se matar algumas vezes, passava dias chorando. Ou ficava muito bem e chamava as vizinhas pra ensinar a fazer crochê e casinha de abelha em panos de prato. A Amiga não sabia o que era rotina.
- Meu pai tá lavando um saco de lixo, achando que é uma santa.
- Que bosta.
- Pois é, que bosta.
- E amanhã tem prova de Matemática.
- Que bosta.
- Vamos pra biblioteca da escola, estudar?
- Vamos. Senão vão dizer que a gente não se esforça.

10 comentários:

  1. Muitas (mesmo) lembranças. E essa última frase... :`(

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  2. Muita pena em pensar que poucos lerão esse texto. Achei-o literário, bom de verdade, daqueles que a gente termina de ler e encosta o livro pra continuar sob o impacto.

    Falando do post em si, a mim faltou conhecer a história das minhas amigas, quando criança. Cresci jurando que todos tinham família margarina menos eu. Sem dúvida eu teria crescido com mais habilidades sociais.

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  3. Tina, tb achei bárbaro. Momentos doídos ditos enquanto passa manteiga no pão.

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  4. Tô chorando, caramba. Mãe esquizofrênica e e pai alcoólatra, prazer. Ufa. Texto lindo.

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  5. Ufa! Dei um suspirão agora! Que texto Tina!

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  6. pai alcoólotra com delirium tremens o/
    lindo texto, querida, lindo.

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  7. Oba, a caixa de comentário fez as pazes comigo. Vc já sabe, já falei no twitter: adorei o texto que tem uma cota boa de imagens muito familiares. Precisamos de uma mesa de bar; ou de restaurante; ou da sala; uma mesa.

    bj
    Rita

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  8. "pai alcoólotra com delirium tremens o/" (2 membros)
    Tina, ótimo texto. Achei literário também e no estilo que eu mais gosto, conto curto.
    beijo.

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